Edgard O C ProchaskaO avião azul
Começou a ficar impaciente, em meio àquele negror de uma noite fria e úmida. A poucos metros estava a longa pista abandonada e fechada há mais de um ano, oculta na escuridão, na qual mal se percebiam os contornos de dois ou três hangares, meio que desmoronados.
Ali mesmo, de acordo com as orientações que recebera de que deveria aguardar, sozinho e no meio da noite. Era o que os velhos haviam lhe dito. Como e por que fora acreditar naquela história?
Talvez pelo fato de ouvi-la, tantas e tantas vezes repetida, vinda dos lábios daqueles seus veteranos companheiros do ar, já um tanto afetados pelo peso dos anos e as milhares de horas voadas.
Bons da cabeça não o eram totalmente, tanto quanto ele mesmo admitia, pois afinal haviam passado boa parte de suas vidas bailando em píncaros, nos quais nem as águias atreviam-se a voar.
No entanto, curioso como sempre o fora, resolveu-se a encarar aquela suposta aparição, se é que esta realmente existia.
Fluíram-se duas longas horas e Térsio já se dispunha a iniciar o caminho de casa, quando ouviu aquele estranho zumbido, fazendo com que voltasse a atenção e o olhar para os lados do que poderia ser a reta final de aproximação.
No cenário fracamente iluminado pelas estrelas, um objeto voador cintilante aproximava-se, envolto em espécie de bruma azulada. Veio crescendo e, após uma descida suave, pousou na pista fazendo a rolagem até o lugar onde Térsio se encontrava.
Espantado pelo inusitado do acontecido, o homem pensou em escapar-se rapidamente daquele lugar, mas uma força indefinível tolhia seus movimentos, enquanto forte emoção ocupava todo o controle de seus sentidos. Podia distinguir claramente agora, o que pousara e viera até sua proximidade. Era um avião, um velho Douglas DC-3 que, por alguma estranha razão, brilhava em meio ao escuro da noite, em tom azul brilhante, como se fosse inflado de gás neon aceso, parecendo uma nuvem de vapor compactada em forma de aeronave. Embora os hélices continuassem a girar, o silêncio circundante era pesado e total, nem mesmo sapos e grilos ferindo o mutismo do lugar.
Viu então que a porta de acesso ao interior do avião estava sendo aberta e uma escada prateada baixada até o solo. Uma figura humana destacou sua silhueta contra o fundo de luz que emanava de dentro da fuselagem, acenando para que subisse a bordo.
Caminhou trôpego e, quando deu por si, estava dentro do avião. A cabine lotada, mostrava que todos os assentos dos longos bancos que corriam paralelos às paredes do aparelho estavam ocupados, por homens e algumas poucas mulheres, alguns destes tripulantes ainda bastante jovens e outros já aparentando avançada idade.
Térsio ficou atônito quando começou a reconhecer a maioria daqueles personagens, todos eles aparentando extrema serenidade, envolvendo-o em clima de simpatia e sublime euforia.
Aquela figura que acenara convidando-o a subir a bordo, delineava-se agora como sendo uma mulher de meia idade, de pequena estatura, agasalhada por um jaleco de couro desbotado, enfeitado por diversas insígnias aeronáuticas. Era incrível, mas lá estava ela, sorridente, exclamando:
- Sim, eu sou Ada Rogato. Benvindo a bordo.
Térsio apenas conseguiu balbuciar:
- Mas ... a senhora já ...
Ela, interrompendo-o:
- Sim. Aqui todos nós já ... menos você, ainda mero visitante.
A baixinha fez-lhe um gesto para que seguisse pelo corredor e foi o que fez, novamente tangido por força alheia. Quando virou-se em direção a Ada, percebeu outras mulheres na penumbra. Reconheceu Thereza de Marzo, que vira em foto de museu, depois outra já bastante idosa, Anésia Pinheiro Machado. E, logo depois, uma mulher alta e esguia, usando capuz de couro, com os óculos de aviação na testa, seu rosto manchado por gotas de óleo, como se acabasse de sair da nacele de um biplano. Somente a vira em fotos de livros sobre história da aviação: Amélia Erhart.
Foi caminhando lentamente pelo corredor, reconhecendo boa parte dos presentes que pareciam divertir-se com seu emcabulamento. Lá estava Alberto Bertelli parecendo dialogar sobre manobras acrobáticas com José Simioni, enquanto Márcia Mamana fitava-os atenta, arregalando os grandes olhos negros.
Três militares ostentando seus uniformes de vôo, nos quais notava-se o emblema do Senta a Pua, do 1º Grupo de Caça, ouviam atentos o que dizia um deles, Brigadeiro Nero Moura.
Sua mente entrava em turbilhão, pois já não conseguia realizar a diferença entre o real de seu corpo bem tangível e o que poderia ser uma espécie de delírio, no qual iam se delineando os semblantes de Charles Lindenberg, Edu Chaves, Gago Coutinho, De Pinedo, Von Richthofen, Saburo Sakai, Mermoz e, até mesmo o Antoine, mais conhecido como Saint Exupery.
Adiantou-se até a cabine de comando, agora curioso em saber quem estaria pilotando aquele fantástico DC-3. O assento da esquerda estava ocupado por um homem pequeno e magro, de paletó e gravata, a cabeça coberta por um chapéu esquisito de abas amarfanhadas. Suas maneiras aristocráticas contrapunham-se ao jeitão do copiloto, um sujeito alto e calvo, com aspecto de caubói americano. O grandão inclinou-se para o lado do comandante e afirmou em bom tom:
- Ora, meu caro Santos Dumont, você tem que reconhecer que eu realizei o primeiro vôo no mais pesado que o ar ...!
Ao que, o homenzinho de chapéu retrucou:
- É, com a ajuda de uma catapulta! Meu 14 Bis ergueu-se do solo e voou, pela sua própria força, meu caro Wilbur Wright, embora nossos vôos irão transformar-se em divergência, que irá arrastar-se pelo resto dos tempos. Além do mais, que diferença isto faz, se estamos todos agora na mesma aeronave?
Nisto Térsio percebeu que o zunido voltava a soar em seus ouvidos e o avião estremecia levemente. Notou que os tripulantes pareciam agitados, enquanto faziam-lhe sinais para desembarcar.
Desceu rapidamente para o solo, coberto pelo orvalho da madrugada e começou a trilhar o caminho da saída do antigo aeródromo. Pareceu-lhe ouvir uma voz a suas costas, vindo de muito longe:
- Vá em paz; algum dia viremos buscá-lo para voar conosco.
Deu alguns passos antes de atrever-se a olhar na direção de onde poderia estar o avião azul. Apenas a penumbra do alvorecer envolvia tudo; a velha pista, os hangares em demolição, porventura até mesmo as lembranças dos aviões e aviadores que, em tempos idos, haviam passado por lá.
Crônica: O avião azul
Crônica: O avião azul
~S~
Abraços,
Krauthein
Krauthein