Diário de um soldado no Haiti

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16_Sertao
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Diário de um soldado no Haiti

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S!



O Haiti é o país mais miserável das Américas. O meio ambiente foi devastado, a infra-estrutura está destruída, as instituições não funcionam e uma guerra entre gangues favoráveis e contrárias ao ex-presidente Jean Bertrand Aristide domina as cidades. Há três anos, cerca de 1.200 soldados brasileiros fazem parte das forças da ONU encarregadas de tentar estabelecer a paz nesse caos. Em 2004, o soldado gaúcho Tailon Ruppenthal, então com 20 anos, foi um dos militares da primeira tropa a passar seis meses por lá. O relato de sua experiência pessoal, dado a Ricardo Lísias, se transformou no livro Um Soldado Brasileiro no Haiti (Editora Globo). Nele, fica claro por que o Haiti causa tantos traumas a quem serve por lá. A seguir, ÉPOCA reproduz com exclusividade trechos do livro.

Assim que coloquei a cabeça para fora do avião, senti uma onda de calor invadir meu corpo. Na mesma hora, meu pescoço ficou ensopado e a farda do Exército, de tecido bem grosso, grudou à pele. Minhas pernas ficaram moles e uma leve tontura quase me desequilibrou. Lembro que a primeira coisa que ouvi foi o meu coração batendo forte. Achei que tinha perdido o controle da ansiedade, enorme para todo mundo durante a viagem, mas depois descobri que o calor, ao menos no meu caso, aumentava o batimento cardíaco. Durante a missão, eu acordaria muitas vezes à noite, sufocado, com o coração quase saindo pela boca. E esse calor alucinado não me abandonou nem por um instante durante os seis meses que fiquei com o Exército brasileiro no Haiti. (...)

Os caminhões, um atrás do outro, andavam em uma velocidade muito baixa. Um cheiro nauseante se misturou ao odor do suor que todos exalávamos. Senti um pouco de tontura. Do lado de fora, tudo que eu podia enxergar era, de quando em quando, alguns latões pegando fogo.

Uma semana depois, quando voltei ao aeroporto, vi que montanhas de lixo, de mais de dois metros às vezes, se acumulavam nas laterais da estrada. O Haiti tem um sistema de saneamento básico totalmente deficitário. O lixo se acumula pelas ruas mesmo e não é raro ver crianças brincando perto de porcos que procuram algum alimento. Ratos enormes saem de qualquer buraco, correm até o lixo e desaparecem. Cheguei a ver urubus em cima de corpos humanos que apodreciam no meio da rua. Porcos e ratazanas, do mesmo jeito, adoravam comer carne humana na frente de todo mundo. Não tinham muita cerimônia. Para dizer a verdade, se depender da quantidade de gente assassinada e largada no meio da rua que eu vi, esses animais não vão passar fome nunca. (...)

Perto dos cadáveres e das crianças jogando bola, os haitianos esperam tranqüilamente o ônibus. As pessoas lá parecem meio indiferentes às cenas mais chocantes. O país é um necrotério a céu aberto. Até hoje, mais de dois anos depois de ter voltado para o Brasil e deixado o Exército, não consigo esquecer esse tipo de coisa. Uma vez, fazendo uma patrulha a pé, enxerguei de longe alguma coisa que se parecia com um porco totalmente queimado. Quando me aproximei, comecei a tremer e quase perdi o controle diante de uma situação pavorosa: não era um porco, mas sim uma criança de uns três anos. Tinham colocado fogo nela e largado o corpo ali na rua mesmo. Não tem nada igual. Você não sabe o que fazer, fica perdido e desesperado. E o calor piora tudo. (...)

Um soldado precisa, sobretudo, de ânimo. A gente tem que estar preparado para correr, passar longos períodos em situações desconfortáveis e tirar energia de qualquer coisa. Mas a depressão coletiva vai contaminando e, depois de alguns meses, até levantar da cama fica difícil. Você lembra que vai cruzar com aquele monte de gente passando fome e não vai poder fazer nada. O desânimo é gigantesco. Por falar em depressão, inúmeras vezes cruzei com pessoas que simplesmente tinham desistido de viver, muito embora ainda não estivessem mortas. O sujeito simplesmente deita no chão para não se levantar mais. De longe, parece um mendigo que está dormindo na rua; mas, quando você chega perto, vê que a pessoa está com os olhos abertos com todo jeito de um cadáver.

Deparei com um desses justamente durante a minha primeira ronda. Olhei por algum tempo para o sujeito, mas não percebi qualquer movimento, nem sequer senti que o cara respirava. Achando que ele estivesse morto, toquei o corpo com a ponta do fuzil e então o cara fez um grunhido medonho. Na mesma hora senti um peso enorme no meu peito: ele estava vivo, mas já tinha ultrapassado o limiar. Literalmente, aguardava a morte. Sonhei muitas vezes com os olhos daquele cara.

Certa feita, em um pesadelo, trocamos os lugares e ele ficou cutucando meu corpo na rua com um galho de árvore. Nesse dia, tive muita dificuldade para levantar. As pessoas cruzam com esse tipo de semi-morto como se nada estivesse acontecendo. Do mesmo jeito, aliás, que esperam o ônibus a um metro de um corpo decapitado e carbonizado. Não faz muita diferença para eles. Depois daquele dia, nunca mais toquei em cadáver nenhum, exceto quando me vi obrigado, uma vez, a ajudar a polícia haitiana a recolher uma cabeça que havia sido separada do resto do corpo, que nunca encontramos, aliás. (...)

Posso dizer com certeza que em todos os dias dos seis meses que durou minha missão no Haiti havia ao menos uma criança colocando a cabeça para dentro da cerca para pedir comida. Normalmente elas vinham em grupo, paravam em frente a um dos portões e começavam a chamar os soldados que estivessem mais próximos. Sempre queriam água e chocolate. A gente tinha sido proibido de dar qualquer coisa, mas obviamente ninguém obedecia e muitas vezes distribuíamos doces. Não é fácil ficar indiferente àquilo. (...)

Certa vez, acho que uns vinte dias depois da nossa chegada, notei um vazamento que escorria de um dos muros do Palácio até a calçada. Como ainda estávamos providenciando nossas instalações, a água devia estar saindo de alguma estrutura provisória. Tentei achar a origem do vazamento, mas, quando percorria com os olhos o fio de água, detive-me no meio da calçada: uma senhora estava literalmente se lavando na água suja do nosso esgoto. Apenas com a roupa de baixo, esfregava alguma coisa no corpo e depois se enxaguava com aquela água. (...)



Um dia, na entrada de uma favela, fomos recebidos por uma forte rajada de tiros. Conforme era a instrução, antes de revidar, nos protegemos onde deu e depois miramos de volta, mas nesse intervalo os milicianos já tinham fugido, saltando de telhado em telhado. Como podíamos vê-los, saímos correndo atrás deles, mas, de novo, depois de alguns metros, acabamos debaixo de uma outra chuva de balas, essa ainda mais forte.

Dessa vez, as balas vinham de diversas direções. Achei que tinha chegado a minha hora. Nunca vi tanta bala junta na minha vida, e tudo vindo na minha direção! No entanto, os milicianos acabaram fazendo um intervalo (possivelmente tinham armas com pouca capacidade de tiros e precisavam esperar outros homens mais bem equipados aparecerem), e nisso aproveitamos para procurar um lugar mais seguro. (...)

Outra situação em que corri um enorme risco foi durante a visita do Koffi Annan, secretário-geral da ONU, ao Palácio de Governo do Haiti. O cerimonial estava sendo preparado com vários dias de antecedência e a missão de paz tinha recebido reforço até de um grupamento especial dos Estados Unidos. Eram uns caras gigantescos que vinham cheios de equipamentos, óculos especiais com visor de última geração, armas superautomáticas, e todo tipo de kit para sobrevivência nas mais diferentes situações. Era até engraçado de ver: coitados, no meio de uma favela nada daquilo teria muita utilidade, só mesmo o fuzil. E se tivessem que sair correndo...



Fui destacado especialmente para acompanhar um grupo desses soldados bem na porta do Palácio. Simplesmente ficaríamos ali parados para o caso de acontecer alguma coisa. Curiosamente, tinham passado a segurança da parte da frente, além do meu pelotão, para os jordanianos, que apareceram com jipes munidos de metralhadoras e um monte de outras armas. Parece até que já sabiam do que ia acontecer.

Os jordanianos eram bem diferentes dos soldados dos outros exércitos: mais velhos, pareciam bastante experientes. Corriam boatos de que eles eram muito truculentos e não vacilavam em combate. (...)

Annan desceu de helicóptero no jardim do Palácio, protegido por outro destacamento especial dos Estados Unidos, pelo que pude ver. Os caras jogaram cordas, ocuparam lugares estratégicos e fizeram todo o teatro a que a gente assiste no cinema. No entanto, logo que Annan entrou e as portas do Palácio se fecharam, da favela veio um mar de balas. Olha, dessa vez o negócio foi ainda mais feio que na escola. Os caras estavam preparados e mandaram bala em cima da gente.

O barulho e o susto foram tão grandes que mesmo os americanos se jogaram no chão perplexos. Todo aquele equipamento não foi suficiente para assustar os milicianos. Eu fiquei sem ação e demorei alguns segundos para entender o que estava acontecendo e me proteger. Quem não pareceu lá muito preocupado foi o Exército jordaniano, que na mesma hora reagiu e pregou fogo contra a favela.

O tiroteio foi assustador. Os caras da Jordânia nem se abaixaram: simplesmente viraram a metralhadora para o lado de onde vinha o ataque e o pente de balas começou a espocar. Sobrou bala para tudo que é lado. Sei lá o que os jordanianos fizeram e muito menos quem foi que deu a ordem de tiro. Não dava para saber exatamente de que ponto da favela vinham os tiros, então os caras simplesmente começaram a disparar, meio a esmo, causando o maior tiroteio que eu vivi durante a missão de paz. Não tinha muito controle ou planejamento e com um ou dois minutos de combate as balas começaram a vir de qualquer lado. (...)

Nos últimos dias, todo mundo bebia cada vez mais. Até os sargentos aproveitavam. Por isso, foi praticamente um favor terem nos deslocado até o porto: ficávamos longe da maioria dos oficiais e tínhamos liberdade para descarregar a tensão que estava impregnada em todo mundo. Acho que todos ali estavam bebendo tanto, também, porque a tensão era quase insuportável naquelas semanas antes da nossa volta. Brigávamos por qualquer coisa e, de uma hora para outra, alguém começava a gritar. Você vai ficando louco e neurótico, começa a pensar que todo mundo está contra você e tentando atrapalhar sua volta para o Brasil. Todo mundo tinha medo de o Exército soltar uma comunicação dizendo que ele ficaria no Haiti mais seis meses...

Só falávamos do retorno. (...)

Não sei dizer exatamente o que aconteceu nas semanas seguintes. Tive uma estranha sensação de alheamento. Comprei um carro e viajei com ele até Santa Catarina. Lá, gastei o resto do dinheiro da indenização do Exército. Aliás, gastei muito mais, pois, quando voltei para a minha cidade, no Rio Grande do Sul, eu estava cheio de dívidas, do que também não sei.

No exame psicológico que realizaram logo após o meu desembarque, o Exército não detectou nada de anormal comigo. No entanto, passados uns três meses, tive uma crise de depressão. Senti um desânimo enorme, misturado a uma raiva estranha, contida e pulsante ao mesmo tempo, e a um sentimento de frustração muito forte. Eu tinha a impressão de que precisaria construir de novo toda a minha vida. (...)

Alguns meses depois de chegar, comecei a me sentir nervoso. Meu comportamento variava bruscamente. Além disso, eu evitava lugares onde antes adorava ir. Comecei a ter muito medo de multidão e evitava espaços públicos. Fiquei bastante agressivo e comecei a beber muito. Minha mãe notou o quanto eu tinha mudado e acabamos procurando um médico que diagnosticou transtorno pós-traumático. Eu precisaria de acompanhamento psicológico. Procuramos o Exército, que se recusou a me ajudar, alegando que havia feito um exame no meu retorno sem constatar nada de anormal comigo. (...)

No primeiro réveillon que passei no Brasil, quando ouvi os fogos, instintivamente me protegi, achando que fosse uma explosão. Coloquei as mãos na cabeça e, assim que o silêncio voltou, comecei a procurar algum ferimento pelo corpo, para ter certeza de que bala nenhuma havia me atingido. Barulhos como esses me incomodam ainda. Em duas ou três ocasiões, por um breve intervalo de tempo, cheguei a acreditar que estivesse no Haiti. (...)

Por fim, desejo deixar bem claro que não pretendo me colocar na posição de vítima ingênua: fui enganado, repito. Mas embarquei para o Haiti por minha própria vontade. Lá, tudo era diferente do que eu imaginava e do que tinham me dito. Também não tenho nenhuma lição de moral para deixar para ninguém. Só gostaria mesmo de lembrar que estamos perdendo a verdadeira guerra: contra a miséria. Como os jogadores da Seleção disseram no dia daquele jogo ridículo, só o combate à pobreza vai trazer a paz. Quando será que vão enxergar isso?





Texto retirado da revista época
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02_Weissheimer
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Relato Dramatico e realista!

Certa vez..em um estagio fora do país, em um Hospital de Veteranos..que fica bem proximo a cabeçeira de um aeroporto..a cada jato que decolava eu via neguinho saindo do leito e ficando embaixo dele com medo..e eles estavam a milhares de km do local da guerra..e ela já tinha acabado a tempo..( Vietnã foi F...... )!

Mas, só foi voluntário para o Haiti! e bastava ver a televisão..JN mesmo que quase não serve para nada..para saber que o Haiti era terrivel!! se ele não leu jornal e nem procurou saber como era o HAITI antes de se voluntariar pela GRANA que era oferecida o problema é dele!!

Vivemos em uma epóca que a informação é a vitória! lembrem-se disso!
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provérbio brasileiro: Quem não conseguiu cuidar do seu dedo, jamais conseguirá cuidar de um país.
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